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Não Fiat Lux

por Dheyne de Souza
Fotografia: Ponte do Zamba – Revert Henrique Klumb (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles)

Dheyne de Souza é goiana desde que nasceu em Tocantins, quando era Goiás. Doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. Tem um canal de leituras de poemas: https://www.youtube.com/@PequenosMundosPoeticos


Não Fiat Lux

não se assuste
com este poema
escrito demais

o que fazer com a palavra?

eu quero destruir a palavra
tirar da carne o horror
da boca o socorro
da vista o fascismo
soltar a gramática do mato
a gramatura do orvalho
a pauta do rio
a pausa

do silêncio
adormecer a palavra
que brota nos dentes quando nas telas as notícias as estatísticas as valas
quero matar a palavra
que morde o lábio
afoga o olho
maldita o outro

neste país de desgraças
eu quero expurgar
as palavras
e com o rabisco o bruto risco o nó na garganta o só no instante

acendo uma vela pra que a luz não me dedique a conta dessa era
pra que o fogo
me leve
pra onde a palavra
se entreva
e no começo era o

tempo em que não havia o momento de bater o ponto o soco o murro o dente o sopro
ventre mente morro socorro

eu quero assassinar esse verbo
pra não aprender a matar
mentir
acusar deturpar pecar cair derrubar maltratar maldizer molestar ofender desesperar
desmatar

eu quero decorar o som de uma imagem sem dor
como se fosse um poema sem nenhuma mesquinha palavra

em que diga
dignidade a todos nós

solidariedade a todos nós

respeito
no peito
o seu abraço e o direito
de tomar sol nos pés

terra nas mãos água nos rios viço no olho sorriso outro abraço

e com a gentileza de uma palavra sem borracha
comunicar
outro tipo de humanidade


Sycorax

O meu nome é Sycorax
finada bruxa banida velha invejosa mãe de Calibã
sobrevivo ao fogo desde então

O meu nome é Sycorax
a bruxa de olhos azuis
feiticeira animista negra
malévola
feito um arco
sobrevivo e sobreviverei a partir de então a cada vez que
o meu nome é Sycorax
essa maldita feiticeira, disse Próspero que escravizou meu filho nossas terras sua cultura
essa maldita feiticeira, disse Shakespeare que me ocultou dos atos

O meu nome é Sycorax
aterrorizo os ouvidos humanos
e gero-os

A minha fúria irrefreável os meus sortilégios os meus abandonos fendas prisões a minha
morte
narraram

O meu nome é Sycorax
sapos escaravelhos morcegos
saíram da sua língua que não conhece
o meu nome
é Sycorax
da lua dos fluxos das ilhas
nas gotas nas folhas nos ventres
eu sou a bruxa argelina

O meu nome é Sycorax
estou há séculos viva
na boca que diz agora
o meu nome

Sycorax


n’oré îukaî xûéne…

a primeira vez que vi
uma mulher indígena
ela era criança
eu também

parece que meus pais eram padrinhos
visitávamos uma vez por ano
ou menos

foi em tocantins
quando era goiás

eu queria muito brincar
criar histórias
correr

ela sempre saía
quando chegávamos

a cor dos seus cabelos

quando a avó dela
que não era indígena
sentava-a

ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤsuas mãos
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤtorcendo
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤo vestido branco

fiz muitas perguntas

era uma promessa;
era pra cuidar;
ela engravidou;
ela se perdeu;

nunca ouvi o som

da sua
histór
ia


Matihi

a Mercadoria ah
a nossa deusa protetora dos mandamentos gestora de unguentos manjedoura de passes
posses pós
misericordiosa, orna as nossas vistas, sustenta nossas certezas, configura nossas
famílias, pole o amor, pele-vitrine, ossos
com ela, embriagamo-nos até perder os cimos,
que caem
por ela, esquecemo-nos da morte
desmemoriando-nos da materialidade,
perdemos os laços, os espíritos, as gerações, a ideia de tempo e de história,
ultraprocessados,
assistimos a tudo
ser destruído
nos intervalos cada vez mais curtos
velozes
vorazes
participamos ativamente sem nos darmos ao trabalho de pensar
que trabalhamos pela Mercadoria
maria de todas as graças
livra-nos das
desgraças
acalenta-nos na saúde, na doença e na obsolescência programada
orai por nós

ostensivamente apaixonados
proliferamos papéis, peles, lâminas
capturamos as luzes, os filtros,
insatisfeitos, perenemente
plantamos pagamos matamos A desejamos mais que tudo
e nada
temos
pensamos?
Sua imortalidade é a mais imortável, imponderável e de ponta
valentia, humor e generosidade
em algum sentido, cotamos
com mãos estreitas,
perdemos
a dimensão do

mato

o Belo é avaro
o Bom, renovável

agora sobre a $olítica
deitamos outras palavras
que a poesia, coitada
ainda pergunta, valente
e

por que não Sonhos?


Fotografia: Ponte do Zamba – Revert Henrique Klumb (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles)

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